sexta-feira, 24 de abril de 2009

A receita da vida

Experimento da "sopa" criadora dos primeiros seres vivos chega aos 50 anos cercado de controvérsias

Rafael Garcia

Foto: Arquivo Ed.Globo
Montagem:Daniel das Neves

Quando o estudante de química Stanley Miller e seu professor Harold Urey conseguiram fabricar em laboratório algumas moléculas simples usadas por seres vivos, a criação de uma teoria consistente para explicar a origem da vida parecia não estar longe. Mas não foi o que aconteceu.

O experimento que mudou a maneira de os cientistas pensarem sobre a origem da vida na Terra completa no dia 15 de maio seu 50º aniversário de publicação, mas o clima da festa parece ser diferente daquele vivido em 1953.

Após meio século de pesquisas, cientistas já se deram conta de que o primeiro ser vivo - o micróbio "Adão" ancestral de todas as formas de vida que já passaram sobre a Terra - devia ter uma bioquímica bem diferente de qualquer organismo conhecido hoje. Quando Miller bolou o experimento há 50 anos, sua intenção era testar uma teoria do russo Alexander Oparin. Ele supôs que há 4 bilhões de anos, quando teria surgido a vida, a atmosfera da Terra não tinha oxigênio. As moléculas que formaram o primeiro micróbio teriam surgido pela ação de relâmpagos em uma mistura gasosa de amônia, metano e hidrogênio, sobre um caldeirão oceânico emanando vapor de água. O cenário exótico ganhou o apelido de "sopa primordial".

Reproduzindo essa mistura em laboratório, Miller surpreendeu a comunidade científica ao revelar que tinha conseguido produzir alguns tipos de aminoácidos, os "tijolos" moleculares que compõem as proteínas dos seres vivos

Após alguns anos, geólogos mostraram ser improvável a Terra ter abrigado essa atmosfera exótica. Mas o trabalho de Miller continua motivando pesquisas sobre a origem da vida, um dos enigmas mais desafiadores da ciência.

A receita da vida

Rafael Garcia

Primeiro ser vivo sumiu sem deixar pistas materiais

Em 1953, ao mesmo tempo em que um estudo de Urey e Miller sobre o experimento era examinado para publicação na revista britânica "Nature", passava pelas mãos dos editores o manuscrito de Francis Crick e James Watson sobre a estrutura do DNA, a molécula que guarda informação para o desenvolvimento de todos os seres vivos. A partir daquele ano, os cientistas teriam à mão a lista dos cinco tipos de ingredientes moleculares para fazer um ser vivo: aminoácidos (compõem as proteínas), açúcares, fosfatos e bases nitrogenadas (compõem o DNA). O problema é que, mesmo que jogássemos essas moléculas em uma sopa, seria impossível o movimento aleatório ter formado de uma hora para outra uma estrutura tão complexa quanto um ser vivo. A natureza teve que seguir uma receita em muitos passos, e os cientistas ainda tentam saber quais foram.

"O estudo da origem da vida difere marcadamente de outros problemas científicos porque tem como meta a reconstrução de um passado remoto do qual conhecemos muito pouco", diz José Fernando Fontanari, professor do Instituto de Física de São Carlos (USP). Ele se dedica, com seu grupo de pesquisas, a resolver alguns dos quebra-cabeças que impedem a formação de uma teoria consistente e abrangente para a origem da vida. Essa meta, por enquanto, é um desafio, pois há diversas teorias restritas apenas a partes do problema, e muitas não se encaixam umas nas outras. Fontanari, que tem vários estudos sobre o assunto publicados na revista "Physical Review Letters", compara seu trabalho com o de um detetive encarregado de resolver um crime sem vestígios materiais. "O melhor que se pode fazer é propor cenários que poderiam ter ocorrido", diz.

A maior das dificuldades para esses cientistas talvez seja a total ausência de fósseis dos primeiros seres a habitar a Terra. Mesmo os registros de vida mais antigos que se conhece parecem ser de micróbios bastante desenvolvidos. Já foram encontrados fósseis de estromatólitos (um tipo de colônia de micróbios) com 3,5 bilhões de anos de idade. Mas os seres unicelulares que os formaram provavelmente já eram bastante parecidos com bactérias de hoje em dia. Fósseis microbianos, aliás, são um assunto bastante controvertido. Alguns pesquisadores acham que o sinal mais antigo da vida não possui mais de 2,7 bilhões de anos.

Sem ter fósseis à mão, cientistas tentam agora achar alguma pista sobre a origem da estrutura bioquímica dos seres vivos. O problema é que as duas peças-chave da vida de hoje em dia - o DNA e as proteínas - provavelmente não estavam presentes nos seres vivos que surgiram há cerca de 4 bilhões de anos.

Requentando a sopa
Stock Photos

Boas lembranças
Miller observa o aparato usado no célebre experimento

Apesar de os dados do experimento de Urey-Miller serem bastante questionáveis hoje, muitos estudiosos que pesquisam a origem da vida o consideram o marco mais importante da área. Até 1953, ainda era disseminada entre cientistas a crença de que a vida seria produto de alguma lei misteriosa da natureza, e não poderia ser explicada pela química convencional. "Mas Miller mostrou que a origem da vida era um assunto que podia ser investigado cientificamente", diz o químico Leslie Orgel, do Instituto Salk, da Califórnia, um dos mais influentes hoje nesse campo de estudo.

Os aminoácidos obtidos por Urey e Miller não eram de todos 20 tipos existentes, e até hoje nenhuma mistura de gases em testes do estilo "sopa primordial" foi capaz de produzir sozinha todas as variedades. O ambiente usado no teste de Miller era inspirado na atmosfera de planetas gigantes, como Júpiter, que tem uma composição não-oxidante, diferentemente da Terra primitiva. "É bem possível que alguns aminoácidos tenham vindo de outros planetas. Eles podem ter aparecido lá pelo mecanismo proposto por Miller", diz Orgel. Não por acaso, já se achou aminoácido em meteoritos.

Nem ovo, nem galinha

O DNA é hoje o guardião de toda a informação genética das espécies e é nele que ficam as "instruções" usadas pelo organismo para fazer proteínas - as moléculas que de fato "trabalham" para manter uma célula viva. O problema é que, para poder se reproduzir e deixar "descendentes", o DNA precisa de uma proteína, chamada polimerase. Se perguntarmos quem surgiu primeiro, caímos num paradoxo do tipo ovo-galinha: um depende do outro.

DNA e proteínas compõem a maquinaria celular de qualquer ser vivo conhecido, seja ele um humano, uma ameba ou uma bactéria. Temos essa semelhança com micróbios porque tivemos um ancestral em comum - um ser unicelular também baseado em DNA e proteínas. Acontece que esse micróbio não foi o primeiro a habitar a Terra, e não temos como deduzir de cara o que veio antes dele. Mesmo que já tivéssemos mapeado o genoma de todos os seres vivos de hoje, o máximo que poderíamos fazer seria mostrar como era o último ancestral comum. O primeiro ser vivo, ancestral desse ancestral comum, continuaria sendo um mistério.

A principal solução que cientistas propõem para explicar a origem do sistema interdependente de DNA e proteínas está em uma outra molécula, o RNA (sigla de ácido ribonucléico, em inglês). O RNA é hoje uma espécie de intermediário entre o DNA e a síntese de proteínas, mas os cientistas acreditam que nem sempre ele teve esse papel secundário.

O RNA tem uma estrutura linear de polímero (molécula em corrente) semelhante ao DNA, por isso também é capaz de guardar informação genética. Na verdade ele é quem "lê" a informação do DNA e a transporta para sintetizar proteínas. Além disso, ele é capaz de atuar como alguns tipos de enzimas, proteínas que controlam reações químicas da célula.

Essa versatilidade do RNA levou o bioquímico Leslie Orgel, do Instituto Salk, na Califórnia, a criar uma solução teórica tida até hoje como a mais plausível. Sua idéia, lançada no fim da década de 60, era a seguinte: caso uma enzima de RNA fosse capaz de se auto-replicar, poderia ao mesmo tempo guardar informação genética e sustentar o metabolismo de um ser vivo - tudo isso sem precisar do DNA e da polimerase. Orgel previa a existência de um mundo de micróbios de RNA, que só foram desbancados pela seleção natural após surgir o primeiro ser vivo com DNA, molécula muito mais eficaz na tarefa de guardar informação genética e impulsionar a evolução.

Como foi o experimento

Uma cavidade com água fervente simulava o oceano primitivo. O vapor reagia com outros gases em meio a descargas elétricas, simulando trovões. O produto da reação era resfriado, e após alguns dias as amostras eram recolhidas para análise.

Daniel das Neves

1- Água

2- Vapor

3- Descargas elétricas

4- Amônia (NH3)
Metano (CH4)
Hidrogênio (H2)

5-Resfriamento por água corrente

6- Aminoácidos foram achados na amostra

A receita da vida

Rafael Garcia

"A grande conquista dos últimos 50 anos para nosso campo de pesquisa é o consenso geral em torno da proposta do mundo de RNA", disse Orgel a GALILEU. E isso pode ser considerado meio caminho andado, porque obter consenso nessa área de pesquisa não é fácil. Basta ver o desacordo sobre as teorias para explicar o mundo pré-RNA. Há discussão para saber se a vida surgiu em água fria ou quente, doce ou salgada etc. "Muitos campos da ciência caminham para um período em que há muita especulação antes que haja tecnologia disponível para responder à questão", diz.

Para Orgel, cedo ou tarde a ciência será capaz de descartar teorias e ficar com apenas umas poucas. "Não sei quanto pode demorar, mas deve ser algo entre 5 e 50 anos."

Outro ponto mais ou menos consensual nas teorias sobre a vida primitiva é o fato de que o RNA não foi a primeira molécula auto-replicante a surgir. A ribose, o açúcar que forma a base do RNA, tem estrutura frágil demais para ter surgido em concentrações grandes o suficiente para dar início à vida. O RNA seria a evolução de uma outra molécula mais simples, só que não tão eficiente. "Aí entramos em território desconhecido, pois ninguém sabe ainda qual era", diz Orgel. Pode ter existido mais de uma molécula replicadora antes do RNA.

Resta aos cientistas tentar elaborar hipóteses plausíveis, bolando moléculas com características adequadas para encaixar no quebra-cabeça. Uma dessas criações de laboratório foi objeto do estudo mais recente de Stanley Miller, na Universidade da Califórnia em San Diego. Ele realizou em 1999 um experimento semelhante ao de 1953 (mas com ingredientes diferentes) gerando uma molécula batizada de "PNA" (sigla de ácido nucléico peptídico, em inglês). Outra molécula candidata a precursora do RNA também foi criada artificialmente na Califórnia, pelo Instituto Scripps. Ela se encaixa no RNA, mas é bem mais estável.

Essas invenções bioquímicas ajudam os cientistas a ter uma idéia melhor de o que pode ter acontecido, mas não são capazes de traçar o caminho de volta da evolução na Terra primitiva. "Não acho que chegaremos à teoria de que uma única molécula originou a vida", diz Orgel. "Teremos à mão uma família de moléculas em potencial."

"Pizza primordial"

Salk Institute/divulgação
Otimista
Leslie Orgel vê futuro promissor para pesquisas sobre origem da vida

A origem das moléculas replicadoras não é a única etapa desconhecida sobre a origem da vida. No ano passado, Fontanari publicou um trabalho teórico sobre problemas na origem da síntese protéica: uma molécula "viva" que saísse fabricando proteínas a esmo não tiraria proveito de sua habilidade se fosse incapaz de manter-se perto do seu produto. A resposta para isso é que a vida provavelmente originou-se numa superfície mineral, talvez dentro de pequenas fendas, e não "solta" na sopa primordial. "Já se fala na noção de uma 'pizza primordial' em lugar da sopa", diz Fontanari.

A origem da vida em uma superfície mineral é uma idéia que tem conquistado cada vez mais adeptos, com o acúmulo de evidências em seu favor. Na Terra primitiva, alguns minerais podem ter sido ótimos catalisadores para a replicação de moléculas ainda incapazes de atuar como suas próprias enzimas. Entre os locais onde poderia residir essa "pizza mineral" estão as fontes hidrotermais submersas no oceano, aquecidas por atividade vulcânica. Um dos pesquisadores que trabalha com essa hipótese é o britânico Michael Russell, da Universidade de Glasgow, na Escócia. Seu estudo mais recente, publicado em dezembro último, diz que o berço da vida seria a estrutura porosa de pequenas cavidades em minerais de sulfito de ferro, presente nessas fontes.

"Sulfito de ferro é um material bem macio", diz Russell. Essas microcavidades teriam sido as primeiras células, e dentro delas teriam surgido as condições favoráveis para a vida se originar. A membrana celular, a "bolsa" que envolve as células de hoje, teria surgido a partir daí. "Nós achamos que o aspecto mais importante da vida é a membrana e que ela foi a primeira coisa a surgir", afirma. Russell diz que sua teoria deve ser submetida a testes experimentais, algo que ainda pode demorar.

"Origem da vida é um problema complicadíssimo, com muito poucos cientistas trabalhando nele, e pouca verba", diz. "Acho que dentro de uns 20 anos vamos ver experimentos importantes." A previsão até que pode ser encarada com algum otimismo. Não seria nada mal levar menos de um século para contar uma história de 4 bilhões de anos.

A VIDA COMO ELA ERA

Os ingredientes dos seres vivos antes de surgir o DNA

TIJOLOS ORGÂNICOS

Antes do primeiro ser vivo aparecer, era necessário que estivessem à sua disposição as moléculas orgânicas relativamente simples, como aminoácidos, açúcares e bases nitrogenadas, que juntas formam as moléculas mais complexas dos seres vivos. Acredita-se que a maioria desses ingredientes tenha se formado em reações químicas na Terra primitiva, mas algumas podem ter chegado ao planeta em meteoritos ou cometas


MOLÉCULAS AUTO-REPLICADORAS

A condição básica para a origem da vida é o surgimento de um polímero (molécula linear formada por várias moléculas-bases encadeadas) capaz de se auto-copiar sem a ajuda de outras moléculas. Já se mostrou que o RNA (ácido ribonucléico) seria capaz de fazer isso, mas provavelmente ele foi precedido por uma molécula (ou moléculas) mais simples, um proto-RNA


PAREDE CELULAR

Outro elemento fundamental da vida terrestre é a membrana celular, que nos organismos de hoje protege o material genético de degradação e cria um limite físico para o ser vivo. Alguns pesquisadores acham que ela pode ter surgido antes da primeira molécula replicadora

RNA

O RNA provavelmente foi a primeira das moléculas genéticas conhecidas a surgir, pois seria capaz de fazer sozinho aquilo que os seres vivos de hoje só conseguem fazer com ajuda das proteínas. Moléculas de RNA atuariam como catalizadoras - promotoras de reações químicas -, sendo capazes de copiar a si próprias

PROTEÍNAS

Uma grande conquista das moléculas replicadoras foi a habilidade de fazer proteínas colando aminoácidos. Proteínas são catalisadoras muito melhores e mais especializadas do que moléculas de RNA. Alguns estudiosos acreditam
que mesmo antes do RNA catalítico, o código genético já era capaz de produzir algumas proteínas simples

DNA

Quando a vida ainda era unicelular, mas já tinha se tornado um bocado complexa, o DNA tomou o lugar do RNA como guardião da informação genética, pois era uma molécula muito mais resistente à degradação. O RNA passou então a exercer um papel de intermediário entre o DNA e os aminoácidos, na produção das proteínas. Hoje o material genético é incapaz de se replicar sem a ajuda de proteínas

Ilustrações: Daniel das Neves

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